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terça-feira, 27 de março de 2012

Como nasce uma cidade

DE HOJE A 21 DE ABRIL DE 2012, A CADA 
QUINZE DIAS,O CORREIO VAI CONTAR COMO O PLANO PILOTO FOI CONSTRUÍDO,OBRA A OBRA, CONCRETO POR CONCRETO, ATÉ SER INAUGURADO

CONCEIÇÃO FREITAS
Será longa e concreta, feita de urbanismo, arquitetura e engenharia, a história que o Correio vai contar desta edição até 21 de abril de 2012.O que se pretende registrar,duas vezes por mês, sempre aos sábados, é o surgimento do Plano Piloto obra a obra, tijolo por tijolo,num desenho sólido,como diria  Chico Buarque.

Há muitos modos de contar o tempo que durou a construção de Brasília. Pode-se começar pela aprovação, em 19 de setembro de 1956, da Lei nº 2.874, que criou a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), braço do governo federal responsável pelas obras da cidade. Ou pela primeira visita do presidente Juscelino Kubitschek ao local onde a cidade seria erguida, em 2 de outubro de 1956. Pode-se recuar vertiginosamente no tempo e começar pelos primeiros ecos do desejo de juntar o sertão e o litoral num só país. Os inconfidentes, Hipólito José da Costa, José Bonifácio de Andrada e Silva, os mudancistas, a Missão Cruls…

Ou pode-se pegar outra estrada,a da ocupação do Planalto Central do Brasil desde a descoberta do ouro pelos bandeirantes ou antes,desde os índios Crixás e Caiapós,ou há dez mil anos, segundo registros arqueológicos da presença humana no território que recebeu a metrópole de 4 milhões de habitantes (contando-se os moradores do Goiás mais próximo).

É esta a estrada que se vai percorrer na edição de hoje. Qualquer que seja a aritmética, ela terá que somar os dias, as horas e os minutos com que se construiu Brasília desde as primeiras barracas montadas pelo Exército, os feitos seminais do inquieto Bernardo Sayão, o recrutamento atabalhoado de roceiros das fazendas próximas, a chegada dos primeiros caminhões trazendo operários de Araxá (MG) e Rio de Janeiro para erguer o Catetinho.

A primeira parte de “Como Nasce uma Cidade” registra o que existia no Distrito Federal antes de o Distrito Federal existir. A última parte,em 21 de abril de 2012, vai mostrar o que havia na cidade quando ela foi inaugurada. Que obras estavam prontas, quais estavam em construção e, afinal, o que Juscelino e 60 mil homens conseguiram erguer em pouco mais de três anos.
Premonição cravada na terra
Corre vagarosa, miúda e longamente entre os antigos moradores de Planaltina, Brazlândia e Sobradinho a crença de que encostado no Distrito Federal há ouro à espera de garimpo. Ouro de verdade, o minério dourado que enlouquece os homens. A lenda nasceu de um texto escrito por um bandeirante do século 18 em que ele descreve um mapa de uma mina aurífera nas proximidades de Planaltina de Goiás, a 80 km da Rodoviária. Quem estuda a pré-história de Brasília e quem vive neste quadrante desde tempos remotos conhece o Roteiro do Urbano (veja na outra página). Dos antigos aos novos historiadores, todos passaram os olhos por esse documento e se deixaram envolver pela possibilidade de que, em algum lugar entre chapadões, córregos e lagoas, exista a pedra   resplandescente.
A lenda do ouro do Urbano é apenas a ponta curiosa de um longo fio que conduz a história de Brasília. A vinda de Juscelino Kubitschek e os demais para o sertão goiano, em 1956, é o trecho mais vistoso desse novelo e por isso mesmo obscurece narrativas de um tempo duzentas vezes maior que os 51 anos de Brasília. Registros de arte rupestre em Formosa e de artefatos feitos pelo homem em Taguatinga e no Parque Nacional de Brasília indicam que a capital do Brasil moderno é habitada há mais de dez mil anos.O brasiliense pré-histórico deixou cravadas na pedra e enterradas no chão as marcas de sua existência.
O território onde há meio século se ergue a capital do país vem sendo percorrido, visitado, estudado e tem sido habitado por grupos humanos diversos—índios, escravos, bandeirantes, sertanejos, desbravadores estrangeiros e brasileiros, tropeiros, roceiros, fazendeiros, mistura que resultou numa gente que o historiador Paulo Bertran chamou de “cerratense”.
Tanta diversidade histórica acabou soterrada pelo furacão modernista que aqui se instalou a partir de 1956, desde que Juscelino estufou o peito e decretou que “deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais…”. Estava decidida a versão predominante da história, a de que neste naco de Goiás havia tão-somente “solidão”.
Para dissolver o tufão e desvelar a história goiana aqui sedimentada ao longo dos séculos, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm se dedicado a resgatar e reconstituir a ocupação do Planalto Central. Na Universidade de Brasília (UnB), historiadores, arquitetos e cartógrafos vão em busca de estradas do período colonial que cortava o DF ao norte; há mais de 30 anos, arqueólogos de Brasília e Goiânia furam o chão em busca de rastros da presença do brasiliense pré-histórico. O superintendente do Arquivo Público do Distrito Federal, Gustavo Chauvet, decidiu mudar o roteiro até agora estabelecido para a proteção da memória de Brasília. “Todos falam das ideias mudancistas, a ideia, a ideia ..., mas há uma outra vertente, que é a história da ocupação do território. O que vamos fazer é integrar as duas histórias”, diz Chauvet. A história da ideia vem de fora; a da ocupação vem de dentro.
Autor de extenso estudo sobre a ocupação remota da região, Chauvet pôs na capa do livro o mapa que mostra a formação territorial do DF que, para surgir, tirou terras de Formosa, Planaltina e Luziânia. Outra imagem que registra fortemente a existência de um povo sertanejo habitando essas paragens é um mapa feito pela Comissão de Cooperação para a Mudança da Capital Federal, composta por goianos em febril campanha pela interiorização do poder (veja na página ao lado). Assinado pelo engenheiro Joffre Mozart Parada, pelo jornalista Zoroastro Artiaga e pelo médico e pecuarista Altamiro de Moura Pacheco, o mapa mostra que havia 96 fazendas no DF—número que marca a origem de todo o caos fundiário do quadradinho.
“Vastíssimo vale”

Desde sua morte, em 2005, o historiador Paulo Bertran tem se transformado numa espécie de referência mítica de um modo de contar a história de Brasília—a partir da história goiana, da dos índios e dos cerratenses, da ocupação da terra desde muito antes de o avião de asfalto e concreto aterrissar num majestoso vale rodeado por um anel de chapadas.Majestoso, aliás, é o adjetivo que Auguste Glaziou, botânico e paisagista francês, integrante da Missão Cruls, usou para descrever o que viu quando aqui aportou:“… cheguei a um vastíssimo vale banhado pelos rios Torto, Gama,Vicente Pires, Riacho Fundo, Bananal e outros; impressionou-me profundamente a calma severa e majestosa desse vale”.
O botânico referia-se ao domo que acolhe todo o Plano Piloto, de uma asa a outra, da Praça dos Três Poderes aos fundos da antiga Rodoferroviária. Domo, no vocabulário geológico, é uma elevação do solo com a forma acentuada de uma meia esfera. No dizer do professor Antonio Carlos Carpintero, da arquitetura da UnB, o Plano Piloto está deitado “no estufado de uma bacia”. A imagem figurativa é a de uma vasilha de formato circular, oval, de bordas altas, tal qual o utensílio doméstico. Com uma diferença, porém. A bacia onde se estende o projeto de Lucio Costa tem o fundo proeminente, “como se alguém a tivesse chutado por baixo”, descreve Carpintero
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Quando acompanhou Cruls, em 1892, Auguste Glaziou estava com 60 anos e já havia projetado e reformado diversos jardins imponentes no Rio de Janeiro. Não se deixou desanimar diante da vastidão do Cerrado. Depois que a expedição montou barracas nas proximidades do hoje chamado Córrego Acampamento (dentro do Parque Nacional de Brasília), o francês saiu a campo: “…quase que diariamente percorri, herborizando cá e lá, ora uma parte, ora outra, desse calmo território e dessas excursões voltava sempre encantado; cem vezes as repeti, quase sempre a pé para facilidade das observações, em todos os sentidos e sem a menor fadiga, tão benéfica é aí a amenidade atmosférica”. Desses passeios, Glaziou concluiu que ali era o lugar perfeito para erguer uma cidade. “Nesse sítio, ainda, a extrema suavidade dos acidentes naturais do terreno não requer trabalho algum preparatório, nenhum para o arruamento ou delineação dos bulevares, nem para a edificação, numa ou noutra direção.”
A vasta planície mantinha se esquecida.Todo o movimento entre Luziânia, Formosa e Planaltina, cidades pré existentes, fazia-se ao redor da área hoje ocupada pelo Plano Piloto. Sozinha, esperava por Brasília. Mais de 50 anos depois da passagem de Glaziou, técnicos norte-americanos da Donald J. Belcher & Associates aterrissaram, em 1954, no quadrilátero demarcado pela Missão Cruls para esmiuçar a geologia e a topografia da região onde,quem sabe um dia, seria construída a nova capital.Definiram cinco áreas para que fosse escolhida aquela que abrigaria Brasília.
A descrição do Sítio Castanho, o escolhido, supera de longe a descrição dos demais. “A fisiografia deste sítio, a 25 quilômetros a sudoeste de Planaltina, é inteiramente diferente da dos outros quatro…”—assim começa a descrição quase lírica dos técnicos americanos. “A extensa planície, de suave declividade para os rios limítrofes, presta-se ao desenvolvimento de uma grande cidade de qualquer tipo possível, sem a obrigação de interromper acidentes topográficos”.
E mais adiante, quase num revelação premonitória: “Os vales em si poderiam ser desenvolvidos para edifícios públicos e a sede do governo”. A equipe de Belcher parecia torcer vivamente para que Brasília fosse construída no Sítio Castanho.Na descrição do Sítio Verde, há uma demonstração dessa suspeita: “Este sítio tem uma característica de grandeza somente compartilhada pelo Sítio Castanho”.Grandioso, majestoso—foram os adjetivos usados pela Missão Cruls e pelo Relatório Belcher, os dois documentos científicos mais importantes da pré-história de Brasília.
Não é majestático apenas por sua topografia estufada e em suave declive. Parece ter sido desenhado a dedo por um anjo da guarda de Lucio Costa. O sítio era demarcado por dois córregos, o Bananal e o Riacho Fundo,coma afluência do Vicente Pires, doTorto, do Vicente Pires, do Guará e dos demais fios de água que descem em direção a uma garganta borbulhante, a Cachoeira do Rio Paranoá. Se o chão onde existe o Plano Piloto parecia ter sido desenhado a dedo pela geologia para receber uma cidade, a leste do terreno havia uma depressão que, do mesmo modo, havia sido esculpida para receber um lago artificial, sem necessidade de nenhuma obra de engenharia, exceto uma barragem.
Assim percebeu o botânico francês,em suas andanças encantadas,em1892, vale repetir.“Fechando essa brecha com uma obra de arte (…) forçosamente a água tomará ao seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos os sentidos, num comprimento de 20 a 25 quilômetros sobreumalargurade16 a 18.Além da utilidade de navegação, a abundância de peixes, que não é de somenos importância, o cunho de aformoseamento que essas belas águas correntes haviam de dar à nova capital despertariam certamente a admiração de todas as nações.” O Plano Piloto era uma premonição cravada na Terra.
A LENDA DO OURO
Neto de um adolescente que serviu de guia para a Missão Cruls,o historiador Mario Castro já percorreu, várias vezes, o que pode ser o Roteiro do Urbano,uma delas com Paulo Bertran e o fotógrafo Rui Faquini.Dias antes de morrer, Bertran havia mais uma vez insistido com Castro para que os dois sobrevoassem a região e novamente tentassem decifrar as indicações topográficas deixadas pelo português Urbano Couto de Menezes que levariam a uma suposta mina de ouro entre Planaltina de Goiás e o Distrito Federal.
O bandeirante esteve nas proximidades do atual território do Distrito Federal em 1750. Era a segunda entrada nos sertões do Planalto Central. A primeira havia sido feita, em 1722, com Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera Filho, descobridor das minas de ouro de Goiás Velho, em 1725.Urbano voltou depois, guiando Manuel Rodrigues Tomar, em expedição que encontrou o ouro de Pirenópolis.
Daí em diante,Urbano Couto estaria fortemente ligado à história deste pedaço de Goiás. Está na memória de Taguatinga—a fazenda de mesmo nome, no mesmo lugar, pertenceu a Antonio Couto de Abreu, filho de Urbano. Está na história de Vicente Pires, a cidade nascida de uma colônia agrícola que ficava à margem da Estrada do Urbano, uma das oito trilhas históricas que cortavam o norte do quadradinho, de leste a oeste, como registra Lenora de Castro Barbo, autora da dissertação Preexistências de Brasília. Há mais sinais da passagem de Urbano pelo Distrito Federal.Na extremidade norte do território, perto dos povoados de Córrego do Ouro e Catingueiro, havia uma fazenda chamada Santa Cruz do Urbano. Acredita-se que Urbano tenha morrido em Jaraguá (Goiás), aos 70 anos.
As três lagoas a que se refere o desbravador são, na interpretação do historiador goiano, a Formosa, a Bonita e a Bom-Sucesso.O “poço sem praia e sem alcance de fundo” seria, na versão de Castro,uma lagoa atualmente poluída que fica nos arredores próximos da cidade goiana. De Planaltina de Goiás vê-se na direção do pôr do sol um “morro do feitio de uma canastra”.De lá, ainda seria necessário identificar outras referências para que, finalmente, se chegasse ao lendário Roteiro do Ouro do Urbano. Mário Castro conclui:“O Urbano é de verdade, o ouro é de verdade e o roteiro leva jeito de ser de verdade”.


Fonte: http://www.correioweb.com.br/comonasce/

Um comentário:

  1. pK MUITL LEGAL! eSTOU NA PESQUISA DO mEU TCC. EM HISTÓRIA E HUMANIDADES:ESPECIALIZAÇÃO, egostaria de receber mais postagens, sob o Título ; O QUE LEVOU A CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA?oBRIGADO.

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