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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Prostitutas de Planaltina amargam o fechamento dos bares e o consequente sumiço dos clientes


Numa rua do Setor Tradicional da centenária cidade, que já abrigou mais de 500 mulheres em décadas passadas, esvaziou-se. Hoje, não se contam mais do que duas dúzias delas, sentadas nas calçadas, à espera dos seus poucos homens e trocados
A espera solitária de mais um cliente: dia 5 de cada mês, eles aparecem mais
A espera solitária de mais um cliente: dia 5 de cada mês, eles aparecem mais
Brasília se erguia. O sonho viraria cidade. Pedreiros, carpinteiros, marceneiros, doutor de terno, todos se embrenharam na construção. A vida em Planaltina, a 40km da futura capital, existia de verdade. Lá, tinha comércio, praça, casarões coloniais e elas, as meninas que divertiam os meninos da terra goiana. Os peões e os doutores também ouviram falar das moças de lá. Oxalá! Planaltina, hoje uma senhora de 150 anos, foi descoberta pela segunda vez.

Inaugurou-se a capital. Corriam os anos 1960. A vida seguiu. O Setor Tradicional de Planaltina era o lugar dos bem nascidos, das famílias de prestígio, dos fazendeiros, coronéis, políticos. Na Rua Marechal Deodoro, da igreja matriz, mais lá pro fim dela, as meninas decidiram que ali se instalariam. Para a alegria dos meninos (muitos deles hoje cinquentões e até sessentões).

O padre torcia a cara. Falava em pecado na missa. As meninas que satisfaziam os meninos daquela gente rica que assistia ao sermão dominical não eram muito bem-vindas no templo sagrado. Mas, tinhosas, elas iam. Afinal, na casa de Deus não pode haver cadeado. A vida seguia. E todo mundo fingia. As senhoras de fino trato ignoravam que elas estivessem ali. Seus maridos e filhos adolescentes, sabedores de cor dos nomes das moças, idem. Quanta hipocrisia!

Vieram os anos 1970. A prostituição e a boemia na região só cresciam. Moças de toda a redondeza de Goiás e até de Minas Gerais foram ganhar a vida naquele fim de rua do Setor Tradicional. O negócio era lucrativo, sempre ao escurecer. Ali faziam sexo por dinheiro, dormiam, comiam e planejavam deixar “aquela vida”. Quase nenhuma deixou. Chegaram os anos 1980 e 1990. A prostituição escancarou-se de vez. As meninas, abusadas, desafiavam tudo e todos. Os botecos e os muquifos onde elas recebiam os clientes, das primeiras horas da manhã até alta madrugada, proliferavam na região.

“Meu Deus do Céu, tinha dia que eram pelo menos umas 500 mulheres ali. A confusão era diária”, conta Antônio Carlos Dutra, nascido em Planaltina, 61 anos, policial civil aposentado, ex-chefe da seção de investigação da 16ª DP. “Cansei de atender ocorrência dali.” Como o tempo é inexorável, tudo mudou. “Agora a prostituição diminuiu e chegou o tráfico de drogas.”

Os anos 2000 chegaram com força de cão. A internet já era uma realidade. Os meninos adolescentes agora não mais precisam dos préstimos das moças da Marechal Deodoro. Têm as garotas, de programas ou não, a hora que quiserem. Bem informados, sabem que devem usar camisinha e das consequências das doenças venéreas. A um clique na tela do computador a mulher desejada, se quiser, pode virar real. Definitivamente, mudaram-se os tempos.

A cada ano dos anos 2000 a clientela foi desaparecendo. Hoje, as moças da Marechal esperam avidamente o dia cinco de cada mês chegar. Dia 5? Sim, é data de pagamento dos trabalhadores das fazendas da região. “Praticamente, hoje só os peões da zona rural procuram por elas. Acabou”, diz Dutra, o policial civil. Há cerca de dois anos, mais um golpe para as meninas de vida nada fácil. Por determinação judicial, todos os botecos e muquifos daquela região foram fechados. Foi o fim. O silêncio gritou na rua da alegria. A sociedade, em nome da moral e dos bons costumes, comemorou. O índice de criminalidade, alegam, reduziu.

Resistência
Manhã de sexta-feira. O Correio foi à Rua Marechal Deodoro. De longe, a constatação do que os moradores avisaram antes de se chegar ali. Parece um lugar em abandono. Muito poucas resistiram. E as que ficaram vivem lá mesmo. Cansadas de guerra, as duas mais antigas, as que chegaram desde os áureos tempos, aposentaram-se. Mas ainda abrigam em suas casas algumas mais jovens.

Hoje, aos poucos, a região foi invadida por salões de beleza e igrejas evangélicas, dessas que se proliferam como gripe no inverno. Não se contam mais do que 10 moças, no mesmo lugar onde havia centenas delas. Uma dessas guerreiras aceitou uma conversa mais demorada. Eva (nome fictício), 60 anos, tem tanta história para dizer como os seus mais de 100 quilos que carrega pelo corpo arrebentado pela artrose. Negra, marca do sofrimento na cara, mas sorriso de quem entende da vida, ela falou de um tempo em que só ficou na memória dela. “Eu era danadinha. Botava gente pra chorar.”

Bares fechados, rua vazia, o fim de um espaço antes repleto de bebidas e mulheres (Gustavo Moreno/CB/D.A Press
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Bares fechados, rua vazia, o fim de um espaço antes repleto de bebidas e mulheres
Eva diz que entrou na prostituição por não ter escolha. “Com 12 anos e nove meses de idade eu tive meu filho. Depois, fiquei sozinha, sem ninguém. Tive que me virar pra não passar fome e parei nos cabarés.” O filho da menina que fez homem chorar cresceu. Ela virou mulher experiente. Rodou por muitos lugares. Hoje, senta-se à porta da casinha onde mora e vê a vida passar perto das moças que ainda não abandonaram a batalha na região.

Desolada com os novos tempos, ela reclama: “Ih, hoje tá muito diferente. A coisa aqui era uma festa. Parecia terra de garimpo. Agora, as meninas não têm mais cliente, o povo sumiu tudo...” Mesmo sem a movimentação de antes, agentes da Secretaria de Saúde passam toda quarta-feira distribuindo camisinha para as moças. “E tem o Grupo Arco-Íris, que faz palestras sobre prevenção das doenças e leva quem quiser pra fazer o teste HIV na Rodoviária”, continua a mulher que carrega o peso de uma vida sofrida e jura que há duas décadas não faz mais programas.

Os programas são realizados nos hoteizinhos malcheirosos da região. Ou mesmo em cubículos improvisados atrás de algumas casas. Variam de R$ 20 a R$ 40, dependendo do tempo gasto com o cliente e da preferência dele. “Mas sem camisinha não faço de jeito nenhum, pode me pagar até R$ 500 que não aceito”, diz uma prostituta morena, de cabelos negros, tatuada nos braços e na região lombar.

Com cara de poucos amigos, a mulher de cerca de 30 anos não é de muita conversa. Tempo é dinheiro. Não pode perder a movimentação dos homens que passam a pé pela rua. Convida-os para “uma conversinha”, uma cerveja gelada. Sim, sempre tem uma guardada na velha geladeira. Provoca-os. Chama-os de amor.

Alguns se demoram mais na prosa e vão embora. Outros entram para os cubículos. E a vida continua do lado de fora. Normalmente, elas preferem os programas diurnos. “À noite, o perigo é grande, tem muito ‘mala’ por aqui”, diz a moça tatuada.

Humilhação
Na mesma rua, mora a mais antiga do pedaço. Jussara (nome fictício), mineira de 74 anos, um filho, três netos, mais de meio século na batalha, hoje se aposentou pelo INSS. “Nasci em Uberaba e comecei na vida no começo de Brasília, lá no Núcleo Bandeirante.” Muitos anos depois, mudou-se para Planaltina, de onde nunca mais saiu. “Ah, moço, aqui não existe mais nada. Depois que os bares fecharam, o povo sumiu.”

Se para Jussara a vida ali acabou, Carla, 35 anos, goiana, ensino fundamental completo, ex-doméstica, ainda insiste. “Tem dia que não aparece um cliente. Eles só vêm depois do dia 5, quando recebem dinheiro. Aí consigo fazer até cinco programas”, contabiliza a moça. Às 8h30 da manhã, coloca a cadeira na calçada da casa — detalhe: à sombra. E fica ali até o sol ir embora. Pinta os lábios de vermelho-sangue, veste uma blusa decotada, geralmente bermudão e exibe, do alto das sandálias de salto alto, as pernas torneadas.

À noite, diz ela, a violência é grande e tem muita droga. “Quando o bar ficava aberto, a gente tava menos exposta. Agora tá ruim”, reclama. E admite, com sinceridade, a exposição: “Eu acho humilhante, sinto muita vergonha, principalmente quando passa um ônibus e as pessoas ficam me olhando”. A moça goiana revela que faz exames regulares: “Até sexo oral, só com camisinha”. Comemora o fato de agora mandar nela mesma. “Quando a gente trabalha em boates, tem hora até pra almoçar. Preferi ser dona de mim mesma.”

Romântica, a moça de gestos e fala educada diz ter namorado sério. “Ele sabe, é caminhoneiro, mas não sente ciúmes.” E planeja: “Como toda mulher, quero me casar e arrumar um bom emprego”. Enquanto o príncipe encantado não chega, a moça de cabelos compridos pintados de loiros senta-se à calçada à espera que qualquer um a leve para um quarto e pague pelos seus serviços sexuais. Mas ela não o chamará de amor. E nem o beijará na boca. “Só com o meu namorado”, decreta. Na Marechal Deodoro, na rua da igreja matriz, toda a história de Planaltina jamais poderia ser contada se não existissem elas, as meninas que trocam sexo por dinheiro — hoje à míngua, à luz do dia.

Quando o bar ficava aberto, a gente tava menos exposta. Agora, tá muito ruim. Acho humilhante, sinto vergonha dessa exposição”
Carla, 35 anos, prostituta, goiana

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